O trabalho de um policial é extremamente difícil. Implica executar suas atividades sob intensa pressão, expor a risco a própria vida e tomar decisões que podem influenciar profundamente a vida das pessoas.
Aprendi esta assertiva quando ainda frequentava as salas de aula da Academia da Polícia Militar, nos idos anos de 2002 e 2003, época em que eu não tinha certeza se esta era a profissão que gostaria de exercer durante trinta anos da minha vida. Hoje já não tenho mais essa dúvida, pois gosto muito do serviço policial.
A cada jornada de trabalho, constato que as dificuldades ora mencionadas são verdadeiras e, além disso, mexem muito com o meu estado psicológico. Trabalhar sob pressão e ver a morte de perto diariamente já não me abalam muito. Por outro lado, as decisões que tenho que tomar constitui a parte mais complicada da minha profissão. Como exemplo disso, devo relatar um fato ocorrido com uma guarnição que estava sob meu comando.
No dia 05 de junho de 2006, estávamos realizando uma operação policial na entrada do bairro Morro Alto, quando abordamos um ônibus. Na ocasião, um dos passageiros foi preso porque usava um documento falso para isentar-se do pagamento da passagem. O motorista e o trocador do coletivo foram arrolados como testemunhas do fato e em seguida foram liberados para continuar a viagem.
Para minha surpresa, ao cadastrar a ocorrência no sistema informatizado, constatei que havia um mandado de prisão em desfavor de uma das testemunhas, o motorista, com base no artigo 121 do Código Penal Brasileiro (homicídio). Tal fato causou-me espanto, porque eu sabia que o motorista trabalhava na empresa havia muitos anos e até então ele gozava de boa credibilidade.
No entanto, o mínimo que eu deveria fazer como responsável pela aplicação da lei era questionar o cidadão sobre a acusação a ele imposta. Desloquei minha guarnição até a empresa onde ele trabalhava e esperamos o retorno do ônibus coletivo. Deparamos com um senhor de fala mansa, fisionomia pacata, vestido com o seu uniforme de trabalho. Ao ser perguntado sobre o mandado de prisão, ele negou veementemente ter motivos para tal, todavia seu olhar denunciava a mentira. Cogitou haver perdido seus documentos e possivelmente alguém tê-los usado para incriminá-lo. Assim, o convidei a me acompanhar até a delegacia para esclarecer a situação, alertando-o para o risco de ele ser preso em circunstância piores.
No trajeto para a delegacia, tratamos o motorista com seriedade e respeito. Por esse motivo, angariamos a sua confiança. Ele relatou-nos que há vinte anos havia sido acusado de ter assassinado um pistoleiro no Estado do Mato Grosso; que foi ouvido pelo delegado naquela época e liberado porque não havia provas contra ele. O suspeito nos afirmou também que resolveu deixar o Estado porque estava sendo ameaçado por parentes da vítima.
Perguntei se ele realmente havia matado o pistoleiro e o suspeito negou novamente, acrescentando que sempre foi trabalhador e desde que veio para Vespasiano labutava na mesma empresa e morava no mesmo endereço com a esposa e a filha deles.
Foi neste instante é que me vi diante daquilo que considero mais difícil na vida de um policial: tomar uma decisão que influenciaria profundamente a vida de uma pessoa. Evidentemente que pelo aspecto da legalidade eu deveria prendê-lo sem pestanejar, afinal havia um ordem judicial para tanto. Mas, por outro lado, num país onde impera a impunidade, onde ladrões de colarinho branco, traficantes de drogas e assassinos contumazes andam livremente pelas ruas porque conseguem driblar facilmente nosso arcaico sistema de persecução criminal, colocar aquele reconhecido trabalhador numa cadeia poderia significar um ato incoerente, considerando que ele estivesse falando a verdade sobre sua inocência.
De um lado, uma ordem judicial, do outro, a fala de um trabalhador. Pensei em liberar o motorista e orientá-lo a procurar um advogado para resolver a pendência na justiça. Resolvi não tomar a decisão sozinho, embora fosse minha competência.
Dada a palavra aos meus companheiros, fiquei ainda mais confuso. O Soldado Felipe entendia que deveríamos cumprir o mandado, sustentando: “afinal quem nos garante que esse homem é mesmo inocente”. Já o Cabo Araújo achou que era melhor “dar um boi” para o motorista, dizendo-me que sua experiência profissional o fazia acreditar na inocência dele.
Diante do impasse, reportei-me aos ordenamentos jurídicos e lembrei-me que o mandado de prisão preventiva não se extingue enquanto não for cumprido. Assim, mais cedo ou mais tarde, aquele senhor seria preso e talvez não recebesse o mesmo tratamento que estávamos lhe dando. Resolvi então cumprir o mandado e mostrar ao preso o que ele deveria fazer para esclarecer os fatos.
Já na Delegacia, apareceu uma senhora acompanhada de uma menina. Tratava-se, respectivamente, de esposa e filha do suspeito. Educadamente a senhora me pediu para conversar com o marido. A menina, já no colo de seu pai, me olhou com rancor. Parecia que ela já sabia o que iria acontecer com seu genitor e que eu era o responsável por ele estar ali. Escutei aquela senhora dizer: “Isso aconteceria a qualquer momento, meu amor”. Percebi que tudo que tínhamos conhecimento até aquele momento era verdade, com exceção das circunstâncias em que ocorreu o crime no qual aquele cidadão figurava como acusado.
A presença dos familiares do motorista na delegacia em consonância com emprego lícito que ele desempenhava realçaram minhas dúvidas acerca da decisão que adotei, o que foi desmistificado quando nós saíamos da delegacia e a esposa do detento me disse a seguinte frase: “ Obrigado, meu filho, por não ter judiado dele. Vai com Deus e que o Senhor Jesus abençoe o seu trabalho”. Tais palavras me mostraram que eu fui justo, como deve ser todo policial, porque apenas executei minha função e em momento algum tirei a dignidade daquele homem.
No retorno ao patrulhamento, o clima dentro da viatura não era de euforia, como ocorre quando prendemos um “vagabundo nato”. Ao comentarmos o caso do motorista, o Soldado Felipe disse que nada nesta vida acontece por acaso. Eu também acredito nisso.
Que seja feita a justiça; se não for a dos homens, que seja a divina.
Aprendi esta assertiva quando ainda frequentava as salas de aula da Academia da Polícia Militar, nos idos anos de 2002 e 2003, época em que eu não tinha certeza se esta era a profissão que gostaria de exercer durante trinta anos da minha vida. Hoje já não tenho mais essa dúvida, pois gosto muito do serviço policial.
A cada jornada de trabalho, constato que as dificuldades ora mencionadas são verdadeiras e, além disso, mexem muito com o meu estado psicológico. Trabalhar sob pressão e ver a morte de perto diariamente já não me abalam muito. Por outro lado, as decisões que tenho que tomar constitui a parte mais complicada da minha profissão. Como exemplo disso, devo relatar um fato ocorrido com uma guarnição que estava sob meu comando.
No dia 05 de junho de 2006, estávamos realizando uma operação policial na entrada do bairro Morro Alto, quando abordamos um ônibus. Na ocasião, um dos passageiros foi preso porque usava um documento falso para isentar-se do pagamento da passagem. O motorista e o trocador do coletivo foram arrolados como testemunhas do fato e em seguida foram liberados para continuar a viagem.
Para minha surpresa, ao cadastrar a ocorrência no sistema informatizado, constatei que havia um mandado de prisão em desfavor de uma das testemunhas, o motorista, com base no artigo 121 do Código Penal Brasileiro (homicídio). Tal fato causou-me espanto, porque eu sabia que o motorista trabalhava na empresa havia muitos anos e até então ele gozava de boa credibilidade.
No entanto, o mínimo que eu deveria fazer como responsável pela aplicação da lei era questionar o cidadão sobre a acusação a ele imposta. Desloquei minha guarnição até a empresa onde ele trabalhava e esperamos o retorno do ônibus coletivo. Deparamos com um senhor de fala mansa, fisionomia pacata, vestido com o seu uniforme de trabalho. Ao ser perguntado sobre o mandado de prisão, ele negou veementemente ter motivos para tal, todavia seu olhar denunciava a mentira. Cogitou haver perdido seus documentos e possivelmente alguém tê-los usado para incriminá-lo. Assim, o convidei a me acompanhar até a delegacia para esclarecer a situação, alertando-o para o risco de ele ser preso em circunstância piores.
No trajeto para a delegacia, tratamos o motorista com seriedade e respeito. Por esse motivo, angariamos a sua confiança. Ele relatou-nos que há vinte anos havia sido acusado de ter assassinado um pistoleiro no Estado do Mato Grosso; que foi ouvido pelo delegado naquela época e liberado porque não havia provas contra ele. O suspeito nos afirmou também que resolveu deixar o Estado porque estava sendo ameaçado por parentes da vítima.
Perguntei se ele realmente havia matado o pistoleiro e o suspeito negou novamente, acrescentando que sempre foi trabalhador e desde que veio para Vespasiano labutava na mesma empresa e morava no mesmo endereço com a esposa e a filha deles.
Foi neste instante é que me vi diante daquilo que considero mais difícil na vida de um policial: tomar uma decisão que influenciaria profundamente a vida de uma pessoa. Evidentemente que pelo aspecto da legalidade eu deveria prendê-lo sem pestanejar, afinal havia um ordem judicial para tanto. Mas, por outro lado, num país onde impera a impunidade, onde ladrões de colarinho branco, traficantes de drogas e assassinos contumazes andam livremente pelas ruas porque conseguem driblar facilmente nosso arcaico sistema de persecução criminal, colocar aquele reconhecido trabalhador numa cadeia poderia significar um ato incoerente, considerando que ele estivesse falando a verdade sobre sua inocência.
De um lado, uma ordem judicial, do outro, a fala de um trabalhador. Pensei em liberar o motorista e orientá-lo a procurar um advogado para resolver a pendência na justiça. Resolvi não tomar a decisão sozinho, embora fosse minha competência.
Dada a palavra aos meus companheiros, fiquei ainda mais confuso. O Soldado Felipe entendia que deveríamos cumprir o mandado, sustentando: “afinal quem nos garante que esse homem é mesmo inocente”. Já o Cabo Araújo achou que era melhor “dar um boi” para o motorista, dizendo-me que sua experiência profissional o fazia acreditar na inocência dele.
Diante do impasse, reportei-me aos ordenamentos jurídicos e lembrei-me que o mandado de prisão preventiva não se extingue enquanto não for cumprido. Assim, mais cedo ou mais tarde, aquele senhor seria preso e talvez não recebesse o mesmo tratamento que estávamos lhe dando. Resolvi então cumprir o mandado e mostrar ao preso o que ele deveria fazer para esclarecer os fatos.
Já na Delegacia, apareceu uma senhora acompanhada de uma menina. Tratava-se, respectivamente, de esposa e filha do suspeito. Educadamente a senhora me pediu para conversar com o marido. A menina, já no colo de seu pai, me olhou com rancor. Parecia que ela já sabia o que iria acontecer com seu genitor e que eu era o responsável por ele estar ali. Escutei aquela senhora dizer: “Isso aconteceria a qualquer momento, meu amor”. Percebi que tudo que tínhamos conhecimento até aquele momento era verdade, com exceção das circunstâncias em que ocorreu o crime no qual aquele cidadão figurava como acusado.
A presença dos familiares do motorista na delegacia em consonância com emprego lícito que ele desempenhava realçaram minhas dúvidas acerca da decisão que adotei, o que foi desmistificado quando nós saíamos da delegacia e a esposa do detento me disse a seguinte frase: “ Obrigado, meu filho, por não ter judiado dele. Vai com Deus e que o Senhor Jesus abençoe o seu trabalho”. Tais palavras me mostraram que eu fui justo, como deve ser todo policial, porque apenas executei minha função e em momento algum tirei a dignidade daquele homem.
No retorno ao patrulhamento, o clima dentro da viatura não era de euforia, como ocorre quando prendemos um “vagabundo nato”. Ao comentarmos o caso do motorista, o Soldado Felipe disse que nada nesta vida acontece por acaso. Eu também acredito nisso.
Que seja feita a justiça; se não for a dos homens, que seja a divina.
FimAutor: Nivaldo de Carvalho Júnior, 3º Sgt PM - obra escrita em 08/06/2006
Nota: Esta é uma obra de ficção. Nomes, personagens, fatos e lugares são frutos da imaginação do autor e usados de modo fictício. Qualquer semelhança com fatos reais ou qualquer pessoa, viva ou morta, é mera coincidência.
É livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença” - Inciso IX do artigo 5º da Constituição Federal.
2 comentários:
Opa amigos.....parabens a todos vcs. pelo trabalho que vem realizando em apodi e todas regiaõ.
se pode
www.blogmarcosmorais.blogspot.com
ou www.cidadefmapodi.com
Abraço......Marcos Morais
Tal história descrita acima mostra-nos, que se a polícia militar agir de forma semelhante como agiu os policias dessa história, o respeito e a admiração pela polícia perdidos desde o os tempos da Ditadura Militar por parte da sociedade voltarão à tona. Para isso, é necesário que a polícia trate a população com respeito e dignidade na hora das abordagens e revistas, pois, estão lidando na maioria das vezes com cidadãos de bens que respeitam e até mesmo admiram o trabalho da Polícia, mas ao sofrerem abusos e terem sua dignidade ferida durante uma abordagem policial também passam a fazer parte dos que de certa forma "odeiam" a Polícia.
Na mudança dessas práticas ultrapassadas, o trabalho policial será mais reconhecido perante a sociedade e, com certeza, novamente houviremos uma criânça dizer que sonha em ser policial ao crescer. Espero que os Comandos das Polícias pensem nisso, pois, a mudança precisa vir de cima para baixo. Se isso acontecer um dia, certamente teremos uma melhor relação entre Polícia e Comunidade.
Um abraço a todos Policiais Militares dignos de Apodi..
Respeitosamente, Isnarde Alves.
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